Zeca Afonso. Memórias inéditas
Testemunhos Segunda-feira, Abril 2nd, 20071.
Nos meados dos anos sessenta (1965), aluno do então 4º ano do liceu, em Lourenço Marques, vi na pauta que esse ano teria como professor de geografia e história um tal de José ( nota: a pauta omitiu o nome Afonso) Cerqueira dos Santos, ilustre desconhecido. O professor, soube depois, tinha sido proíbido de ensinar no então continente e desterrado em Moçambique, sob condição, da PIDE, de não se meter em política.
Sentado na primeira fila da aula, reparei no primeiro dia de aulas que o professor trazia um par de peúgas de cores diferentes. Penteava-se com os dedos. O ar era displicente, o sorriso cúmplice e doce. Tais ingredientes, por serem nesse tempo contra a corrente, fascinaram-me.
Apresentou-se timidamente e omitiu a actividade no mundo das cantigas. Era um professor excepcional. Incitava-nos à investigação e a questionar tudo, desde os manuais a ele mesmo. Retive para sempre uma frase:” Não estou aqui para impingir, mas para insistir e resistir, convosco de preferência”.
2.
Um dia, na discoteca Baily, em Lourenço Marques, descobri entre os velhos discos em saldo, um single com o meu professor agarrado a uma velha viola. Zeca Afonso. Duas músicas: “Menino do Bairro Negro” e “Natal dos Simples”: Comprei o disco. Na aula seguinte, quando os colegas tinha saído, confrontei o professor com o disco. Disparou, estupefacto: “Onde é que arranjaste isso?”. Expliquei o que se tinha passado. O espanto do mestre era legítimo – ele fora expulso de Portugal e proscrito nas rádios justamente por causa daquele disco e das posições que defendia em defesa dos humilhados, contra a hipocrisia intelectual dominante, todos os dogmatismos e o regime fascista.
3.
Havia, no então Rádio Clube de Moçambique, um programa em que semanalmente eram divulgados os cantores mais votados. Elvis Presley liderava. Organizei no liceu uma votação para o disco do nosso professor. Teve adesão maciça. Na semana seguinte, Zeca Afonso liderava o “Hit Parade” e assim esteve durante nove semanas. Tive que emprestar o disco ao radialista João de Sousa, mais tarde meu colega, que desconhecia o autor. A PIDE acordou. Mandaram confiscar o móbil do crime, sentenciando a proibição do cantor. Por essa altura, já eu andava em tertúlias clandestinas com o meu professor. Ele cantava. Eu dizia o “Mostrengo” de Fernando Pessoa. Imaginam o resultado: no fim do ano, a PIDE decretou novo exílio ao professor, que foi ensinar para o Liceu Pêro de Anaia, na cidade da Beira, a mais de 500 quilómetros. Depois, seria recambiado para Portugal e definitivamente banido do ensino.
4.
Viveu de dar explicações particulares ( poucas) e da ajuda dos amigos. Nunca mais nos vimos. O nosso reencontro deu-se quando vim de Moçambique para Coimbra fazer a licenciatura. O Zeca recordava-se de mim, ao mais ínfimo detalhe. Ele continuava quase na miséria. Coimbra e a sua universidade viviam, então ( vale a pena ler o livro de Celso Cruzeiro “Coimbra 69”, das edições “Afrontamento”) um período de confronto agudo contra o fascismo. Envolvi-me até ao pescoço e fiz parte dos 39 malditos eleitos pela PIDE como os mais perigosos agitadores da universidade. Eu era um teenager e o mais novo do grupo malvado, mas paguei, mesmo garoto, a factura. Os meus outros 38 companheiros, idem aspas – Alberto Martins, Celso Cruzeiro, Osvaldo Castro, Fernanda Bernarda, Strech Monteiro, Pio Abreu, Barros Moura, Silva Sardo, Palma Dias, Maria dos Anjos Albuquerque, só para citar alguns. Em 1969, paralisámos a universidade. Organizámos greve geral a exames (adesão de 98,3%), suspendemos as praxes serôdias e a Queima das Fitas. A GNR cercou a universidade e ocupou a cidade de Coimbra. Na final da Taça de Portugal, a Académica defrontou o Benfica. Todos os jogadores entraram em campo com braçadeiras de luto académico. O Estádio Nacional foi uma gigantesca manifestação contra o fascismo. Coimbra invadiu Lisboa. O Presidente abóbora Américo Tomás, pela primeira vez, não se deslocou para ver o jogo e entregar a taça.
A retaliação foi brutal. Vários companheiros foram incorporados compulsivamente no serviço militar, outros de nós foram expulsos de todas as universidades, vítimas de processos disciplinares e criminais e da cadeia. Houve para todos os gostos. Conheço desde muito novo o estatuto de arguido – réu se chamava na altura.
5.
Zeca Afonso, clandestino e silenciado, era a nossa inspiração, o nosso exemplo, a nossa rectaguarda, o nosso resguardo. Procurado pela PIDE, chegou a cantar para mais de dois mil estudantes.
Esta história muito breve dará um dia, porventura, um livro. Porque o espaço é limitado, dou convosco um salto nos tempos.
A doença ( arterose lateral amiotrófica) fez vergar o Zeca a partir de 1984. Acompanhei-o até ao fim. Assisti àquela agonia macabra, dia-a-dia.
Ostracizado por alguma partidocracia, a esquerda incluída – Zeca sempre recusou filiar-se em partidos -, vigarizado por falsos amigos, odiado pelos algozes da genialidade, o meu insubstituível amigo Zeca teve a urna exposta na Escola Secundária em Setúbal, de onde, no tempo do fascismo, fora expulso. Exigiu que, no funeral, não houvesse símbolos partidários. Mais de cem mil pessoas foram dizer-lhe adeus.
Eu não fui. Fiquei em casa. A chorar, pois claro. Não me despeço de quem vive no meu coração para sempre.
6.
Para o bem e para o mal, o meu coração, os meus afectos, a minha memória, são em mim quem mais ordena.
Assim será até ao dia (breve?) em que reencontrarei o Zeca. Ainda lhe devo sete contos, moeda antiga, que me emprestou para comprar a capa e batina no prego, ou seja, na casa de penhores.
Falaremos seguramente das utopias que partilhámos, as quais, um dia, serão concretizadas.
Assim foi com o 25 de Abril de 1974.
Assim será com as cidades sem muros nem ameias que nascerão sobre os escombros deste planeta do martírio no qual temos vivido aparentemente sem a nossa revolta.
Aparentemente, insisto, porque a revolta e a morte, como os sismos, têm em comum a particularidade de viverem connosco mas nunca terem hora marcada para eclodir.
A revolta é sempre vencedora.
A morte, para os que amamos, vale por um episódio efémero de consequência e vida transitórias.
Alguém, no perfeito juízo, pode dizer que, há 20 anos, morreu Zeca Afonso?
O Zeca permanece, ouve-se, fez escola e é exemplo – até na sombra de uma azinheira emergem e se murmuram nos lábios dos homens bons e das mulheres simples as palavras e os sons que Zeca Afonso deixou para a eternidade, imunes aos vampiros da memória.
Até breve, Mestre, companheiro, Amigo, camarada.
P.S.
Uma curiosidade.
Foi Otelo Saraiva de Carvalho, que liderou na Pontinha, em Lisboa, o grupo de oficiais que dirigiram a operação militar do 25 de Abril, quem escolheu as duas canções-senha – “Grândola Vila Morena” e “E depois do adeus” – que se constituíram como luz verde para o arranque das unidades que ocuparam pontos estratégicos da capital. Otelo hesitou entre duas canções do Zeca. “Venham mais cinco” e “Grândola Vila Morena”. Acabaria por se decidir pela primeira por causa do verso “o povo é quem mais ordena”. Assim se internacionalizou o concelho alentejano, cujo Presidente da Câmara é um militar de Abril, Carlos Beato, eleito pelo PS.
è som senhor, o tal Beato, mas apoiante incondicional de Cavaco e do cavaco/socratismo… É preciso dizê-lo. Zeca Afonso nunca virou…
è som senhor, o tal Beato, mas apoiante incondicional de Cavaco e do cavaco/socratismo… É preciso dizê-lo. Zeca Afonso nunca virou…
è som senhor, o tal Beato, mas apoiante incondicional de Cavaco e do cavaco/socratismo… É preciso dizê-lo. Zeca Afonso nunca virou…
Muito obrigada por esta partilha… aguardo com ansiedade o livro de memórias, mas entretanto tenho de fazer esta pergunta: porque esperaram tanto tempo, aqueles que conheceram o Zeca, para partilhar as memórias de quem ele foi? Se não se apressam, em breve teremos apenas as mentiras de quem não o conheceu pessoalmente. Por favor apressem-se. Ele, que se partilhou com tanta gente, com certeza vos agradeceria…
Muito obrigada por esta partilha… aguardo com ansiedade o livro de memórias, mas entretanto tenho de fazer esta pergunta: porque esperaram tanto tempo, aqueles que conheceram o Zeca, para partilhar as memórias de quem ele foi? Se não se apressam, em breve teremos apenas as mentiras de quem não o conheceu pessoalmente. Por favor apressem-se. Ele, que se partilhou com tanta gente, com certeza vos agradeceria…
Muito obrigada por esta partilha… aguardo com ansiedade o livro de memórias, mas entretanto tenho de fazer esta pergunta: porque esperaram tanto tempo, aqueles que conheceram o Zeca, para partilhar as memórias de quem ele foi? Se não se apressam, em breve teremos apenas as mentiras de quem não o conheceu pessoalmente. Por favor apressem-se. Ele, que se partilhou com tanta gente, com certeza vos agradeceria…